Longe de casa

          Acredito que nem tudo que a gente escolhe é o melhor para nós, dentre tantas coisas para fazer quando se está na adolescência, entre treze à dezoito anos, fui escolher a menos apropriada por falta de responsabilidade, mesmo na época eu achando que era a coisa mais certa para se fazer. Na vida nós podemos escolher o que queremos ser, o que faremos ou até quem vamos amar, mas as escolhas sempre têm de ser certas, caso contrário as erradas podem mudar o nosso destino de forma bruta e pode nos levar para o pior em segundos. A família é o símbolo, a razão de viver e a nossa segurança, sem ter os nossos pais e irmãos por perto, o nosso mundo desanda e tudo tem que ser enfrentado de várias maneiras, cada uma tem um tipo de solução diferente. Não é fácil escolher a vida que escolhi, não foi fácil vivenciar o que eu vivenciei. É estranho como um momento de fúria pode modificar o contexto do nosso dia, a nossa razão, a nossa rotina. Hoje tenho cinquenta anos, sou casado e tenho dois filhos lindos, um tem quinze e o outro oito. Eu espero que eles não façam a mesma coisa que eu fiz quando eu tinha quinze anos, essa minha história de vida servirá de exemplo a todos os pais que pensam que estão no controle, mas na verdade não chegam nem perto de controlar o que os filhos fazem.
          Na era dos meus quinze anos, em 1975, tudo era muito diferente desse nosso tempo contemporâneo. Tudo começou no dia do meu aniversário, dia quatro de abril - Dia do final da guerra no Vietnã, com a vitória do regime comunista do norte sobre os EUA. Nesse dia os meus pais não queriam dar uma festa de aniversário para mim, e dinheiro não era problema pois eles tinham de sobra e o motivo de não ter dado a festa foi por causa das minhas notas no primeiro bimestre. Claro que como qualquer adolescente eu fiquei muito nervoso e eu saí e fui para a casa de um amigo. Os pais dele tinham ido viajar, ele me ofereceu um whisky do pai dele e eu, que nunca havia ingerido bebida alcoólica e, em nervos, resolvi beber com ele. O gosto não era dos melhores, mas bebemos por algum tempo e decidimos chamar mais um amigo. No final acabou saindo uma festa, onde tinha gente até andando pelado pela sala, o meu aniversário não podia ter sido melhor. Vomitei, beijei, dormi, vomitei de novo e desmaiei, os meus pais não sabiam aonde eu estava e chamaram a polícia. No dia seguinte eu cheguei em casa de ressaca, todos me xingaram muito e acabei ficando de castigo por um mês. Nem presente de aniversário eu ganhei naquele ano.
          Minha família era constituída por cinco seres, entre eles eu, a minha mãe, o meu pai, o meu irmão que tinha dez anos e um cachorro. Meu irmão me dava um trabalho, era complicado. Meu pai era o sargento da polícia da cidade e a minha mãe era uma famosa advogada. Na época as músicas que eu gostava era puro rock'n roll, vinte e seis dias depois do meu aniversário a banda Queen tinha lançado a música "Bohemian Rhapsody" e ao mesmo tempo o primeiro videoclipe da história. Era algo novo, a música que falava de um boêmio me inspirou. Depois do incidente do dia do meu aniversário, eu, como qualquer outro adolescente rebelde, não mantive a mesma relação de sempre com os meus pais. Era só briga, eu saía escondido e voltava quase de manhã bêbado sem ninguém saber, matava aulas, eu não ligava aos sermões, falava mal dos meus pais para todo mundo. Eles tentavam me controlar, mas eu fugia quase sempre. Muita coisa eu fiz naquela época que eles nunca perceberam, pois eu também nunca contava. No dia dez de Setembro do mesmo ano, foi o dia final da minha paciência. Eu havia ido a uma festa de uma amiga minha, ela havia comprado o disco duplo ao vivo "Alive!", da banda Kiss, que tinha lançado no mesmo dia. Meus pais me seguiram sem eu perceber, de longe assistiram toda a festa. Chamaram a polícia e ferraram com a vida da menina, dos meus amigos e com a minha também e depois de muita discussão, após um tapa da minha mãe eu subi para o meu quarto e montei uma mini mala, roubei todo o dinheiro que tinha na carteira do meu pai e da minha mãe, deixei um bilhete e fugi. Fui embora de casa, deixando apenas o bilhete como aviso.
          A primeira coisa que eu fiz foi ter ido à rodoviária, para pegar um ônibus para ir à cidade que a minha avó morava. A viagem foi longa, o ônibus parou em vários lugares, conheci um pessoal bacana que estavam indo para a mesma cidade que eu, fiz boas amizades. Ao chegar na casa da minha avó, avisei a ela para não contar aos meus pais que eu estava lá. Prometi arrumar um emprego, para não precisar tirar dinheiro dela. No momento tudo pareceu muito fácil, muito simples. Eu consegui arrumar um emprego numa loja de música, lá vendia muitos discos e, como eu sabia bastante de música, fui contratado para atender e indicar discos para os clientes.                         Enquanto aos amigos que eu fiz na viagem, eu visitava eles quase todos os dias, muita curtição. A minha avó recebeu uma ligação dos meus pais, eles ficaram desesperados por eu ter fugido e mesmo com o coração partido ela mentiu dizendo que eu não estava morando com ela. Morei lá por dois anos, meus pais trabalhavam muito então eles não tinham tempo para visitar a minha avó. No dia vinte e sete de Março de 1977, eu fui mandado embora da loja de música, nesse mesmo dia ocorreu o maior acidente aéreo da história e a minha avó teve um início de infarto e quase morreu. No dia do meu aniversário de dezessete anos, a minha avó soltou sem querer para os meus pais o meu nome, assim acabou contando que eu estava lá. Eu estava na casa dos meus amigos, numa festa dedicada ao meu dia. A festa foi boa, aquele foi o "ano punk" e as bandas famosas eram "The Ramones", "Sex Pistols", "Ratos de porão" e os grandes "Bee Gees", que lançaram o melhor disco dos anos 70. Na volta pra casa eu reparei que o carro dos meus pais estavam na frente da casa da minha avó. Não quis entrar, voltei para a casa dos meus amigos e fiquei lá por uns dias. Mesmo assim, a minha mãe descobriu onde eu estava, mas eu consegui fugir de novo só que dessa vez fui para bem longe.
          Não foi fácil sair sem se despedir da minha avó, sem pegar as minhas coisas. Meus pais não iam sair de lá sem me levar. Com as minhas economias, consegui ir para um outro estado, aluguei um apartamento e fui procurar um emprego. Eu comecei trabalhando no próprio prédio em que eu morava, assim eu não precisava pagar o mês, mas o trabalho era puxado. Nessa época eu estava me acostumando a morar sem ter algum parente por perto. Nessa nova cidade, as festas eram mais pesadas e as amizades que eu fiz não eram muito decentes. Me apresentaram um novo mundo, um novo estilo de vida. Nas festas rolavam sexo, drogas e músicas que falavam de amor.              Era muito estranho, mas o baseado fazia eu ficar relaxado, com uma paz interior e era como se deixasse o meu equilíbrio emocional no meio, nem nervoso e nem muito feliz. As meninas que eu conhecia, mal sabiam o meu nome e já se atiravam pra cima de mim. Foi assim por cinco anos, sem extrapolar e mantendo o meu emprego, até que um dia a polícia invadiu uma festa e todos que estavam nela foram presos, inclusive eu. Com vinte e dois anos, em 1982, época do "Thriller" do Michael Jackson, na época do início do Barão Vermelho, do lançamento do álbum "The number of the beast" do Iron Maiden, foi uma época muito boa que eu desperdicei sendo preso por porte e uso de drogas. Com a ficha suja e desempregado, cinco anos depois resolvi deixar as festas de lado e procurei ir trabalhar. 1987 foi o pior ano da minha vida, não consegui arranjar emprego, todos os meus amigos haviam pegado mais anos de cadeia do que eu, então não tinha um lugar pra ficar. Morei na rua por cinco meses, justamente no "Ano Internacional dos Desabrigados", passando fome e vivendo de doações. Às vezes eu almoçava e jantava, a maioria dos dias eu não jantava. Foi no final de outono que eu consegui achar uma solução para a minha vida, eu li numa folha de jornal, que tinha caído da mão de uma pessoa, que haveria um teste para ser assistente de um empresário. Antes de ir fazer o teste procurei tomar um banho e vestir uma roupa decente, mesmo sendo difícil de encontrar uma. Tomei banho no banheiro do ginásio da cidade, eu havia feito amizade com o guarda. O que eles avaliavam era o conhecimento do ser e, somente depois, eles analisavam o profissional e pessoal. Por incrível que pareça eu passei no teste, e tive dificuldade pra explicar sobre o meu pessoal e o incidente criminal, mas fui admitido e consegui um novo emprego.
           Como assistente, eu recebia bem e era um bom trabalho. No primeiro mês eu ainda morei na rua, mas após receber o salário eu consegui encontrar um lugar pra morar. Desde então eu comecei a aproveitar a época dos Guns N' Roses, Nirvana e Green Day, Raul Seixas, Cazuza. Eu fui reformando a minha vida aos poucos, trabalhando mais e curtindo menos. Fiz muita amizade com o patrão, com as pessoas que visitavam ele e as festas que eu ia eram mais cultas, não tinham drogas, sacanagem, mas era uma nova vida para mim e que só ia me fazer crescer. Em 1990 consegui a minha primeira promoção na vida, de assistente passei a ser gerente supervisor dos executivos juniores, um emprego bom com um salário ainda melhor. Com trinta anos, comecei bem o novo século. Oito dias depois do meu aniversário, Steven Adler foi expulso dos Guns N' Roses por alto consumo de heroína, fazendo o grupo gastar uma nota alta. Nesse dia percebi o quanto as drogas pode acabar com a vida de uma pessoa e até achei bom o que aconteceu comigo, serviu de exemplo para a minha evolução. Nove dias depois, eu fui no show do ex-Beatle Paul McCartney, no maior estádio da cidade. Foi o maior show que eu já fui, e bateu o recorde de público. No dia sete de Julho, eu conheci a mulher da minha vida. Eu já estava morando em uma casa, tinha o meu próprio carro e eu tinha uma vida financeiramente bem organizada. Eu resolvi tomar um café num quiosque na beira da praia, pedi uns aperitivos e fiquei por lá. Era folga do serviço, então eu dediquei o dia para a minha própria diversão e foi lá no quiosque que eu a conheci. Ela chegou com um biquíni lindo, toda molhada da água salgada e pediu um drinque para um camarada lá do quiosque. Eu ofereci os petiscos, ela aceitou e estranhou eu estar sozinho por lá. Então eu a convidei para sentar lá comigo, para conversarmos e nos conhecermos melhor. Uma mulher incrível, com uma história de vida muito admirável também, cinco anos mais nova que eu, era uma pessoa que eu não podia desperdiçar com facilidade. Então ela me convidou para ir no guarda sol onde estavam os amigos dela. Eu aceitei e passei a tarde inteira com o pessoal. Eu nunca havia me sentido tão bem na minha vida. Apesar da data ter sido boa para mim, para a música brasileira não foi. No mesmo dia, o poeta Cazuza havia falecido, aos trinta e dois anos, por causa da AIDS. Então eu peguei o telefone dela e agradeci pela tarde maravilhosa, eu previ que tudo poderia dar mais certo se eu tivesse aquela mulher do meu lado.
          Como era época de copa do mundo e o Brasil estava em festa, muitos lugares transmitiam os jogos. Então eu convidei a mulher maravilhosa que eu conhecera para ir assistir o jogo do Brasil comigo em algum barzinho na cidade. Apesar da derrota, o meu dia foi especial pois eu havia conquistado o coração de uma pessoa pela primeira vez de forma verdadeira, foi a noite mais longa da minha vida. No mesmo ano lembro da unica série de televisão que eu assisti até hoje, estreada no dia quatro de Outubro, "Barrados no baile". Desde que a gente começou a namorar, a minha vida tinha ganhado mais felicidade, mais amor. Em 1993 decidimos nos casar, eu já era gerente geral da empresa e nós já estávamos morando juntos, e marcamos a data para o dia vinte de Janeiro. No dia do casamento, que coincidiu ser no mesmo dia que o Bill Clinton se tornou o presidente dos EUA, me ocorreu uma falta interior. Naquele momento eu realmente senti a falta dos meus familiares por perto, durante todo os anos passados eu havia quase me esquecido completamente, mas o casamento é uma data muito forte, ela traz tudo o que não queremos na lembrança, ela traz a saudade. Com esse sentimento forte dentro de mim, eu simplesmente comecei a chorar, e chorei como nunca havia chorado em toda a minha vida. No fim me casei sem ter os meus familiares do lado e sem ter o meu irmão como o meu principal padrinho. Quatro dias antes eu tinha ido no show do Nirvana, no Hollywood Rock Fest, que foi o último show que eu fui nos anos 90. Nas férias que eu tirei no final do ano eu resolvi voltar pra cidade onde os meus pais moravam, onde eu morei. Quem dera não tivesse ido e apenas sentido a saudade das lembranças boas, mas o sentimento era tão forte que eu não aguentei e tive de ir.
          Dezoito anos sem ver a minha família, quando cheguei na cidade fui direto para a casa onde eu morava. A cidade estava enorme, muito maior de quando eu saí, e quase me perdi para achar a rua certa. A minha antiga casa estava reformada, um pouco diferente de quando era antes. Apertei a campainha, uma moça me atendeu. Meus pais não moravam mais lá. Perguntei sobre a família que habitava antes, a moça me disse que a família que morava na casa havia se mudado para outra cidade, por causa de um moço que tinha arrumado um emprego. Logo pensei "é o meu irmão", e perguntei qual a cidade, mas não tive uma resposta. Então eu fui na imobiliária que vendeu a casa e descobri para onde a minha família havia mudado. A cidade ficava uns trezentos quilômetros, eu decidi ir até lá. Cheguei na cidade e fui para a rua onde a secretária da imobiliária me deu como informação. Achei a casa, era uma casa maior do que a antiga, então eu percebi que a minha família ainda continuava bem. Apertei a campainha e um homem me atendeu. Era mesmo o meu irmão de dez anos que eu batia e xingava o tempo todo na adolescência. Ao me reconhecer, ao invés de me abraçar e matar a saudade, como eu havia pensado, acabei levando um soco e caí no chão ao som de gritos de despejo, ele realmente não queria me ver na frente. Eu tentei acalmá-lo, mas não deu muito certo, acabei apanhando de novo, ele estava realmente muito furioso. Acabei deixando o meu telefone, se ele quisesse era só me ligar que eu vinha conversar com ele. Não entrei na casa, não cumprimentei ele, não fiquei sabendo de nada e acabei ganhando um olho roxo e um nariz quebrado. Voltei para a minha cidade, desmoronei a chorar e a desabafar com a minha mulher e voltei a tentar esquecer de novo o que a saudade tentou me trazer.
          Em 1995 nós tivemos o nosso primeiro filho, no dia dois de Abril. Poucas horas depois dele nascer, o mundo parou para a erupção do "Vulcão Pico do Fogo", em Cabo Verde. O meu filho nasceu muito bem, numa época onde o rock nacional havia ganhado raimundos, mamonas assassinas, e no exterior Bon Jovi e Evanescence começavam a fazer sucesso. Um ano depois, no dia vinte de Janeiro eu havia feito uma festa surpresa para a minha mulher, comemorando o terceiro ano de casamento. Foi uma festança, os nossos amigos dançaram, beberam, comeram, foi um arraso. Até a música vira-vira, dos Mamonas, a gente dançou. Meu patrão amou a festa e ficou muito chateado por causa do vice-presidente dele não ter ido, sendo que eu havia convidado todos da empresa. No mesmo dia, a cidade de Varginha teria sido supostamente visitada por seres extraterrestres. Lembro que no dia um de Março, o meu filho ficou muito doente e quase morreu, foi num sábado então eu pude passar a noite inteira no hospital. No dia seguinte o meu filho já estava melhor, era uma notícia boa. A notícia ruim é que o avião da banda Mamonas Assassinas havia caído, matando todos os integrantes e mais quatro pessoas.
          Quatro anos depois, no dia 5 de junho, eu recebi uma ligação do meu irmão, perguntando se eu poderia ir visitá-lo. Eu aceitei o convite. Nesse mesmo dia o sambista João Nogueira havia falecido. Então, no dia seguinte, eu fui até a casa do meu irmão. Ao me atender, ele me abraçou e me beijou no rosto e disse que estava com muita saudade e pediu perdão por ter feito aquilo naquele dia em que eu o visitei pela primeira vez. Dessa vez a recepção foi do jeito que eu havia pensado, só que eu esperava mais gente me abraçando e me beijando, ou me batendo por falta de educação. Então o meu irmão preparou um café, eu perguntei aonde estavam o pai e a mãe e ele não respondeu nada. Tomamos, comemos e conversamos e eu repeti a pergunta para saber aonde os meus pais estavam e mais uma vez ele desviou o assunto. Uma hora ele me chamou para ver umas fotos, me mostrou um monte de imagem interessante e eu reparei que em todas elas, apesar do momento de felicidade, havia sempre um "amargo" por trás. A expressão não mente e eu comecei a ter noção do que viria pela frente. Então, mais uma vez eu repeti a pergunta de onde os nossos pais estão, ele me respondeu curto e grosso "no céu". Após um silêncio de segundos, eu com uma angústia e um aperto no peito não acreditei no que ele havia dito. Então ele me contou a história inteira:" Desde que você fugiu de casa, o pai e a mãe te procuraram por todas as partes. Eles entraram em pânico e por um tempo pensaram que você tinha morrido, até que descobriram que você estava na casa da avó. Foram para lá e ficaram quase um mês te procurando. Antes de voltarem para cá, a vovó teve um infarto, pela pressão de ter te deixado fugir e por ver o desespero deles por causa de você. Ela resistiu mais umas duas semanas aqui em casa e depois faleceu. O pai desistiu de te procurar, a mãe entrou em um estado de nervos tão grande que teve que ficar um tempo em um hospital psiquiátrico. Depois de um tempo que ela retornou consciente de que um dia você voltaria para os braços dela, o pai falava que havia te esquecido, mas na verdade era só da boca pra fora, pois dava pra ver nos olhos dele a falta que você fazia. Eu, meu irmão, senti tanta falta de você que hoje em dia só te chamei pra vir aqui por causa dessa saudade que estava me matando. E então, dois dias antes de você aparecer aqui em casa, a mãe e o pai tinham ido numa festa de aniversário de casamento de um amigo. A festa foi numa chácara e acabou de madrugada. Na volta o pai dormiu no volante, atravessou a pista e bateu de frente com um ônibus de viagem. Nenhum dos dois aguentaram os ferimentos, irmão, e morreram de uma forma horrível. Isso dois dias antes de você aparecer! Você não sabe como é um sentimento de um cara sozinho no enterro dos seus próprios pais, nem pra você estar aqui comigo dividindo essa dor, essa perda." Depois disso ele começou a chorar, eu comecei também, mas então ele completou: "A mãe, um dia antes do acidente, orou pedindo que você voltasse, que ela e o pai já não estavam aguentando viver sem ter você perto deles, que você viesse para ela ver o seu rosto, te beijar, te abraçar... Mas o destino é uma coisa que a gente não escolhe, não é mesmo, e as preces dela foram atendidas, mas ela já não estava mais aqui, nem o pai. Eles eram muito felizes na época em que éramos só nós quatro, você podia não ser feliz, contente com as coisas que aconteciam em casa, mas você poderia bem ter aguentado a barra, ou então se abriria com eles e não apenas fugisse. A nossa vida perdeu a cor com a sua partida, tudo era feito com diversão, mas não com felicidade. Eu não sei o que você conseguiu demorando tanto tempo para voltar, felicidade eu acho que isso você não ganhou". No final de contas ele estava mais do que certo, eu acabei passando por coisas que hoje seriam o fim de uma pessoa, na época eu ainda tive salvação. A dor de ter recebido a mensagem trágica da morte dos meus pais foi algo muito bruto, muito tenso. Da mesma forma que eles queriam ver a minha pessoa, a minha imagem atual, eu queria muito ver como eles estavam e poder contribuir o carinho que eu neguei e não ofereci na época da minha rebeldia. O perdedor maior sou eu, eles ainda foram vencedores e pensaram em mim o tempo todo. Eu só pensei em mim mesmo e ignorei esse sentimento de amor familiar durante muito tempo, só depois que eu os perdi que eu tomei juízo e percebi o quanto isso é importante para a vida da gente.
          Meu irmão foi morar comigo, resolvi não deixar ele morando sozinho, solitário e com um puta peso nas costas, assim a saudade diminuiria um pouco. Em 2002, nove anos de casado, meu filho com sete anos, com o meu irmão do meu lado e o Brasil pentacampeão mundial. Foi a unica copa que eu realmente parei para assistir, foi um espetáculo com o fenômeno a levar o país inteiro ao delírio. A minha vida estava mais completa, mais feliz. Para completar a minha felicidade, nasce o meu outro filho no dia 27 de outubro, dia em que o Luís Inácio Lula da Silva foi eleito como o novo presidente do Brasil. Quatro Anos depois, a empresa em que eu trabalhei boa parte da minha vida pegou fogo, consecutivamente eu fiquei desempregado. Mas, eu havia feito uma boa reserva de dinheiro e com a ajuda de minha mulher e do meu irmão, montamos uma pizzaria. Um negócio próprio, de atendimento rápido. Meu irmão já havia trabalhado em uma pizzaria na cidade onde morávamos, então ficou fácil para o negócio começar a andar. Nos dois primeiros anos foi difícil, mas depois começou a engrenar e dar muito certo. Nós estamos faturando muito mais do que eu ganhava na empresa, então a nossa vida melhorou ainda mais. Hoje em dia a gente trabalha muito, o meu irmão arrumou uma mulher muito simpática e vai se casar com ela no mês que vem. Espero que eles tenham uma boa vida juntos, assim como eu tenho com a minha esposa e os meus dois filhos. Hoje fazem dezessete anos que os meus pais morreram, o tempo passa rápido e a gente nem vê. Tudo o que ficou para mim é apenas saudade mesmo, uma saudade que, infelizmente, eu não vou poder matar. Mas o importante é esquecer o que ocorreu no passado, o presente é o que importa. Sou novo, minha mulher e meus filhos mais ainda e tudo o que eu passei na minha juventude me tornou um homem melhor. Claro que eu poderia ser melhor ainda se eu não tivesse feito as "burradas na época", poderia tudo ter sido muito diferente, e mesmo eu me sentindo bem hoje em dia, ainda há um pequeno remorso pelo que fiz.
          O que me deixa bobo de ver é que hoje em dia os adolescentes são piores de como eu fui na minha época. Na minha vida jovem, poucos faziam coisas que eu fiz, havia mais amor entre as pessoas, os meninos eram mais controlados, as meninas sempre simpáticas e meigas, mas tinham lá as exceções, como por exemplo a turma que eu andava na época. Já hoje em dia as coisas mudaram e o adolescente contemporâneo só quer saber de festa, a menina de hoje em dia só pensa em coisa errada, são piores que os meninos. As drogas eram pouca gente que usava, hoje em dia é moda e quem não usar é excluído do grupo. Hoje existem grupos, antigamente todos eram amigos. Hoje você escolhe o amigo, antes você fazia amizade. O mundo jovem só me entristece e o problema é que eu me espelho neles de forma igual. Eu fiz isso quando jovem, eu sei o quanto sofri depois para conseguir sair, pelo que eu tive que passar, de como essas coisas me levaram para uma vida vazia. Só hoje eu percebo o quanto eu cresci, o quanto eu me tornei mais humano. É somente apanhando na vida para a gente aprender.
          Para quem não me conhece, eu sou Rodrigo Alves Cunha, filho de Ana Lúcia Alves Cunha e João Augusto Cunha, irmão de Andrey Alves Cunha, marido de Adriely Borges Almeida, pai de João Guilherme Borges Cunha e Luís Fernando Borges Cunha. Eu demorei quase vinte anos para descobrir a importância do amor familiar. Por eu ter fugido e ficado longe de casa, eu me envolvi com pessoas erradas, usei drogas, fui preso, passei fome, dormi na rua, passei frio, não vi o desespero dos meus pais e nem a morte deles, quase não encontrei o meu único irmão e entre outras coisas. E que a minha experiência sirva de atenção para todas as famílias. Poucos têm a sorte de sair do buraco em que eu estive da mesma forma que eu saí. É necessário de muita fé para nós termos uma vida tranquila e precisamos sempre estar evoluindo e crescendo com o tempo. Sinto falta dos meus pais e até hoje me arrependo do fundo do meu coração de ter fugido de casa. Isso foi o que eu vivi. Esta é a minha história, essa é a minha verdadeira lição.


Autor: Caio Estrela

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